A árvore tombada
quinta-feira, 24 de dezembro de 2009
segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
Gênios da História
Alan Ball
(1957)
Criador e roteirista da maior obra-prima já produzida pela humanidade em todos os tempos: Six Feet Under, a grandiosa, épica e infinita série de TV feita entre 2001 e 2005. O gênio absoluto e monumental que, em 05 maravilhosas temporadas, conseguiu discutir sobre todos os fenômenos inerentes à maior das oposições: a vida e a morte. É a representação mais visceral, agressiva, realista e profunda sobre a condição humana jamais feita; a observação da existência e do universo a partir da angústia, da tristeza, do sofrimento e da felicidade; a redução do homem lógico, surreal, imaginário e latente ao charco físico e imperfeito da realidade.
Passarei anos e anos tentando absorver todos os significados complexos e encantadores do programa, analisarei minuciosamente todos os episódios, personagens e diálogos, mas creio, com sinceridade, que o verdadeiro e completo significado de Six Feet Under apenas aparecerá em alguns milênios, talvez. Ou jamais.
Sou, no entanto, eternamente grato a Alan Ball por ter criado a minha maior exultação, a minha maior reflexão, o meu maior espelho.
William Faulkner
(1897 - 1962)
O maior escritor de todos os tempos. Americano, desgarrado, sulista e degenerado. Embriagado, confuso, genial e extremamente elegante, sobretudo nas fotografias de Bresson. E muito baixo, atarracado, sempre mexendo os pulsos, com o olhar entristecido e amargurado, o olhar aprendido na infância, no Mississippi, onde a tragédia e o desespero sempre foram protagonistas históricos.
E ele transformou este imenso e apaixonante Sul dos Estados Unidos num testemunho eterno sobre a psicologia da loucura, da normalidade, da religião, da intolerância e da amargura, e conseguiu ser mais realista, incisivo e complexo do que todos os outros mestres da literatura. Levou o fluxo de consciência ao nível da psicologia, e criou um trabalho atormentado, quase profano, que fala como nenhum outro sobre a maior conquista da representação humana: a visão da tristeza geral e variável.
Não se enganem: ela está em todos nós.
Damon Albarn
(1968)
Líder do Blur, criador do Gorillaz, entusiasta dos músicos africanos e ícone central do The Good, The Bad & The Queen, que talvez nomeie este blog. Personagem da geração estupenda de músicos ingleses hoje chegados aos 40 anos, ele provavelmente seja, entre todos, o meu favorito.
Também o mais relevante desta geração, um Midas competente e genial que tranforma todos os projetos nos quais se envolve em grandes feitos artísticos. Variou entre o Rock britânico, os ritmos orientais, as experiências com o eletrônico e o monumental álbum sobre Londres, a Londres em chamas, a Londres feliz, contente e esnobe. Que, todos os dias, não se esquece de jogar suas lembranças contra a minha janela saudosista.
Hoje, ninguém tem tanto talento musical. Ou tanta inspiração criativa. Ou tanto estilo, simplesmente.
E Damon Albarn ainda foi protagonista do momento mais feliz da minha vida. Obrigado.
Zinedine Zidane
David Gilmour
John Ford
(1894 - 1973)
O melhor, o mais importante e mais clássico diretor da história do cinema. Conseguiu transformar As Vinhas da Ira numa referência visual, algo praticamente impossível. Adaptou a obra caótica de Steinbeck e a aprimorou, tornou-a mais profunda, solene e musical, emprestando a fotografia à miséria e ao sofrimento, e sem os apelos de Sebastião Salgado e demais virtuosos da pobreza; mas com estirpe, postura, respeito e realismo.
Foi o grande gênio do faroeste, falou sobre o jornalismo como poucos fizeram, denunciou a podridão do próprio gênero e, incansável, não parou de rodar obras-primas até muito velho. Um bastardo.
E, como se não fosse suficiente, ajudou a criar a linguagem narrativa que todos os cineastas e roteiristas hoje utilizam. Um diretor que fez o cinema como entretenimento e, ainda, objeto de contemplação. O meu favorito; azar dos outros.
Zinedine Zidane
(1972)
O melhor jogador de futebol que, felizmente, tive a alegria de ver desfilando (e não apenas jogando) pelos gramados do mundo. Um gênio, e sinceramente não tenho como defini-lo de outro modo menos enfático ou mais conservador. E ainda o mais elegante, completo e talentoso. O que conseguia simplificar todos os movimentos, e todos os chutes, passes, lançamentos e domínios, como se o esporte fosse uma atividade quase entediante e ultrapassada.
Mas era tão simplório e contido ao jogar, tão instantâneo e claro... Por que apenas ele conseguia fazer tanto a partir de tão pouco? E por que todos os outros pareciam acompanhá-lo muito distantes, atordoados, como se ele fizesse algo absolutamente mágico e momentâneo, completamente invisível ao resto do mundo? E sem apelos estilísticos ou desnecessários, sem os exageros triviais dos colegas de profissão.
Tudo tão perfeito, impecável, incorrigível. Eu ficaria envergonhado em repreendê-lo por qualquer coisa, em qualquer situação. E expulsaria o Materazzi naquela trágica partida.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh1e0Ur72ebJ0emoEF2jkg76hlNZcWiX9Iz5y6vpMce1mc-NSKbnh9kre_My9FGlH_QoFGZjzloIwWuQiDUrFqPhoTpT5xRYsprCze6CZeoZBJwvx_mgmVOHUiPzmpf6SycYAouI-Hefno/s320/gilmour.jpg)
(1946)
Andar de bicicleta durante o inverno respeitoso de fevereiro, naqueles 15 ou 20 minutos que separavam a simpática casa na Simone Weil do Boulevard cujo nome agora não me aparece na cabeça. E sempre com a mesma velocidade, observando o gelo escorregadio derivado da neve que derretia com o aquecimento das primeiras horas da manhã, mas sem muita preocupação com o conteúdo das aulas.
Cheio de casacos, e com apenas uma luva nas mãos, já que a outra havia se perdido, com a touca pelo avesso cobrindo o cabelo e os fones nos ouvidos. Uma sinfonia única e duradoura que se prolongava pelo caminho, fazendo seus intervalos conforme as ruas mudavam de nome e o caminho mudava.
No começo, quando ainda seguia as indicações formais do Google Maps, restrito a Time, Hey You e Comfortably Numb. Depois, com a cidade já encaixada nas lacunas da minha memória, no ápice, imerso em One of These Days e Shine on You Crazy Diamond.
E, acreditem, poucas vezes na vida fui tão feliz.
Edward Hopper
(1882 - 1967)
Mas, afinal, estamos todos loucos ou apenas solitários?
Frances Conroy
(1953)
Pouco importa se todos os humanos racionais e conscientes não hesitem em colocar a Meryl Streep como a maior atriz da história do cinema. Eles estão todos certíssimos, cobertos de razão. Não existe ninguém, de fato, próximo à supracitada. E nunca existirá, creio.
Mas existe Frances Conroy e a sua impecável, pungente, monumental e histérica atuação como a matriarca Fisher em Six Feet Under. A melhor atuação feminina entre todas as peças teatrais já executadas, entre todos os filmes já rodados, entre todos os minúsculos cenáculos escolares apresentados nas festas de encerramento do semestre.
Apaixonante, profunda, realista e envidraçada; e todos os adjetivos pertinentes e impertinentes que consigam moldar a falha observação aqui apresentada sobre a performance desta atriz. Atuação superior inclusive ao nosso velho convívio diário, ao viver natural, espontâneo, como se ela antevisse o casual e procurasse superá-lo. Como se Ruth Fisher não fosse a pintura ou o retrato de um texto, de um personagem, mas a manifestação humana, ou mesmo perfeita, da existência na sua mais instintiva essência como matéria viva e reagente.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
O café (ou o absinto)
Paris sempre foi especialmente solitária. A única a abrigar, entre todas as muitas e disformes cidades do mundo, a simpatia e a severidade da solidão. A única igualmente fria, acolhedora, melancólica e aprazível, incomparável em todos os sentidos e em todos os paradoxos, mas especialmente convidativa aos solitários. Eles não escolhem lugar ou estilo; estão em todos os guetos e locais, em todos os variados rostos turísticos e resignados. Estão nas lojas requintadas e nos minúsculos restaurantes e espeluncas; estão servindo os cafés, recebendo as gorjetas e chorando a ilusão dos amores perdidos ou nunca conquistados. Estão sorrindo as últimas férias e a realização dos maiores sonhos.
Paris é, talvez, o principal entre todos os controversos, inimagináveis e realistas sonhos já sonhados, imaginados, sentidos ou solitariamente percebidos. A maior emoção dos desiludidos, a grande alternativa aos frustrados, a repetição histórica necessária aos saudosistas e o impressionante entusiasmo dos jovens. Ela é o recalque dos impossibilitados, o desejo dos infiéis e amantes, a apologia à liberdade e ao pensamento. A incrível exalação dos infinitos prazeres e torturas, o consolo dos desesperados. E todas as outras qualificações positivas e negativas concernentes ao impiedoso abandono efetuado pela solidão.
Ela é o começo de todas as potenciais tristezas e frustrações, a renovação de todas as expectativas e o destino inevitável de todos os afogamentos e imprevisões. A mulher solene, simpática e sintética, ansiosa e desgostosa, muito atônita e pouco esperançosa. A mulher ainda resistente e impassível, contudo; vestida, penteada e ornada com todos os caprichos merecidos e justificados. Ela, solitária, deseja uma pequena xícara de café, sem rodeios ou inflamações. Espera o tempo passar e espera o café acabar seguindo a proporção temporal. Ele estará terminado em alguns instantes e será absolutamente pontual, recebendo o convidado. Ou não.
O café em Paris é solitário. Ele nunca está acompanhado pelo requinte dos cardápios, está sempre lívido, escuro, achocolatado, pouco adoçado e extremamente quente. Ele precisa aquecer os sentimentos congelados e a temperatura sistemática e constante. Precisa estar sobre as minúsculas mesas das varandas; precisa pingar algumas gotas, surpreender o cliente e renovar a compaixão. O café é a única companhia de todos os homens e mulheres apenas acolhidos pela severa simpatia da cidade. O café, assim solitário, é também a principal manifestação da solidão. A infeliz manifestação da solidão da mulher, do homem e de todos os outros homens e mulheres de Paris.
O tempo passou, como sempre passará. O café acabou e esfriou, nessa ordem, e precisou retornar com alguns adicionais. O desgosto e a ansiedade aumentaram, os olhos também. As têmporas curvaram-se, mas o tempo passou. Todas as expectativas contraíram-se, esgotaram-se, e a realidade pareceu muito escura e agressiva, atirando o vento, o frio e a incontida solidão provocada pela ausência do café. Paris pareceu feia, fúnebre, e o universo florido, amarelo e vermelho, como mágica, converteu-se em cinza e preto. Começou a chover.
O tempo passou e a mulher percebeu a insuficiência do café. Ele não mantinha o pensamento, a esperança ou a devoção. Esfriava com muita rapidez, estava amargo e desqualificado. Ela chama o garçom e exige outra bebida, algo sufocante, acolhedor e forte. Recebe, recompensada, um estranho e incomum líquido transparente, entorpecente e confuso; o resultado é imediato, atordoante e pernicioso, servido em doses altíssimas, repetitivas, extremamente velozes. E o tempo acelera o compasso.
Paris está embriagada. Magistral, chuvosa, ainda mística, mas profundamente embriagada. Sem as abotoaduras e as pregas dos vestidos e calçados, sem as luzes dos teatros e os penteados elaborados. Louca, inerte e perdida, com o olhar dissipado, as expectativas desfiadas e o pensamento difuso. O copo repousa estático, vazio; a garrafa igualmente vazia, preenchida com todos os centímetros solitários permutados pela infelicidade da mulher. Ela está sozinha. Todos os homens e mulheres estão sozinhos. Todos os restaurantes e espeluncas estão sozinhos, alagados, escaldantes e chuvosos.
Paris não percebe a indiferente companhia lateral, à mesa, escura e solene como o cachimbo, o chapéu e a amargura. Ela não desvia o olhar, não balbucia reação, não acompanha os passos, não segue os movimentos. A mulher é a enorme cidade e a íntima solidão de todos os cidadãos solitários e acompanhados. A manifestação da solidão de todos os homens e mulheres. Não é possível distinguir, enfim, absolutamente nada. Ela está, enfim, louca e corrompida, finalmente entregue.
Mas, afinal, estamos todos loucos ou apenas solitários?
Nova Friburgo, 31/08/2009
Nova Friburgo, 31/08/2009
sábado, 12 de dezembro de 2009
A fantasia
O morto
Ele andava pela contramão na avenida lotada de carros, e chovia bastante. Mas ele não sabia exatamente aonde estava indo, sequer a razão pela qual estava dirigindo, visto que não tinha compromissos marcados, família ou amigos restantes.
A tormenta não cessava, e começou a ventar. Um vento cortante, penetrante, e as janelas do veículo estavam abertas. Era impossível fechá-las naquelas circunstâncias. A água entrava e voava pelo automóvel, e voavam também os papéis no banco de trás, a pesada maleta de trabalho e a Bíblia Sagrada.
Quando o carro se chocou com um dos postes tombados pela erosão momentânea. Apagaram-se as luzes internas, e tudo parecia imóvel, estático, morto. Mesmo o vento parou de soprar, mas todos os pertences que a natureza queria levar já haviam sido sugados. E ali repousou o esqueleto mecânico, apodrecendo, por décadas e décadas, até o fim dos tempos. E não se enganem: o tempo não durará mais que algumas décadas.
Mas é melhor considerar esta história uma grande e incômoda metáfora.
Borges enviou-lhe, então, a Las Vegas. Ele conquistou U$$ 233.127 em prêmios, limpou máquinas e controladores, devorou residências e abandonou prostitutas. Experimentou bebidas desconhecidas e adormeceu, pouco cauteloso, dentro do famoso Shelby GT500 de Randall Raines.
Acordou, horas depois, confortavelmente instalado na residência familiar de Guadalajara, e tomou café. Releu os jornais e chegou, pontual, à escola.
America's playground was just a dream.
"Quero outra caneca, Judite." O homem levantou os braços e pegou a caneca.
Ela entrou na cozinha. Pegou o machado e ergueu a imagem, exigindo proteção. Chamou a velha dos sortilégios, a bruxa, e voltou à sala. Cortou a cabeça de Holofernes, sentou-se à mesa e também comeu.
Caravaggio, imaginando semelhante teatro, sentou-se, comeu e pintou o quadro. E todos imaginaram, então, situação exatamente idêntica.
O apostador
Angel era exímio jogador de dados, roleta e 21. Conseguia calcular probabilidades em frações mínimas de segundo. Tinha raciocínio metódico e instantâneo, e aos 24 anos obteve consagração e celebração em Atlantic City.Borges enviou-lhe, então, a Las Vegas. Ele conquistou U$$ 233.127 em prêmios, limpou máquinas e controladores, devorou residências e abandonou prostitutas. Experimentou bebidas desconhecidas e adormeceu, pouco cauteloso, dentro do famoso Shelby GT500 de Randall Raines.
Acordou, horas depois, confortavelmente instalado na residência familiar de Guadalajara, e tomou café. Releu os jornais e chegou, pontual, à escola.
America's playground was just a dream.
Judite e Holofernes
O homem entrou na residência apagada e lamentável. Sentou-se à mesa e comeu as bisnagas e as carnes preparadas pela mulher. Ela olhava com assombro para os canários do quintal."Quero outra caneca, Judite." O homem levantou os braços e pegou a caneca.
Ela entrou na cozinha. Pegou o machado e ergueu a imagem, exigindo proteção. Chamou a velha dos sortilégios, a bruxa, e voltou à sala. Cortou a cabeça de Holofernes, sentou-se à mesa e também comeu.
Caravaggio, imaginando semelhante teatro, sentou-se, comeu e pintou o quadro. E todos imaginaram, então, situação exatamente idêntica.
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
Os 63 minúsculos livros da Biblioteca
As margaridas
Uma sinfonia italiana tocava no salão, e o sujeito estava sentado e sozinho, tomando cerveja. A música não era exatamente italiana, mas cinematográfica. Uma gaita estridente, repetitiva, intermitente. Ela se misturava ao silêncio, embora tocasse com alternância; mas o som ecoava, valente, e completava o ciclo.
E o sujeito certamente conhecia aquela música, sabia tê-la ouvido em alguma ocasião indistinta. Ele cheirava a composição e se lembrava das margaridas do cerrado, das caminhadas eventuais, do amor reciclado que nunca voltou e nunca chegou a reclamar seus direitos.
E ele saiu do salão como se nunca tivesse sentado naquela cadeira escura e manca, como se aquele inesquecível momento fosse uma catarse, e o seu dever moral estivesse definitivamente cumprido.
Isso, talvez, em algum lugar inóspito do Oeste, aonde as ferrovias ainda não ousavam chegar.
O capote
E ele, como fazia todos os dias, no mesmo ritmo, tornou a vestir o surrado capote que lhe servia de abrigo desde os 18 anos. O manto esverdeado ficava sobre o chapéu, protegendo a bengala da chuva. O livro de Bioy Casares, novo e platinado, adormecia embaixo do casaco e da blusa fatiada, e com ele adormeciam as histórias, os contos, os rochedos e os minotauros. Mesmo os assassinos, os sedentos por vingança, que forçavam a retenção do capote e queriam sentir a chuva, a neve, o vento e as névoas inconstantes.
Mas não havia espaço para a literatura de Bioy Casares naquele planeta, e o homem do conhecido capote não queria aquela libertinagem entre os seus prazeres: Deus, o relógio e a apaixonada contemplação do nada.
Pobre romance de colinas turvas e elefantes brancos.
Judite e Holofernes
O homem entrou na residência apagada e lamentável. Sentou-se à mesa e comeu as bisnagas e as carnes preparadas pela mulher. Ela olhava com assombro para os canários do quintal.- Dê-me outra caneca, Judite. O homem levantou-se e pegou a caneca.
Ela entrou na cozinha. Pegou o machado e levantou a imagem, exigindo proteção. Chamou a velha dos sortilégios, a bruxa, e voltou à sala. Cortou a cabeça de Holofernes, sentou-se à mesa e comeu também.
Caravaggio, imaginando semelhante teatro, sentou-se, comeu e pintou o quadro. E todos imaginaram, então, situação exatamente idêntica.
As plantações de trigo
Juan caminhava todas as manhãs, religiosamente, pelas 89 plantações de trigo fundadas em 1453 nas planícies de Valdemossa. Vizinho de Chopin, nômade e beberrão, o agricultor tornara-se mestre nas artes de fabricação da cerveja especializada. E quis construir Constantinopla.
O investimento ganhou subsídios e investimentos e amealhou a confiança de Borges, homens e mulheres poderosos. Solícito, Juan respondeu com promessas vultuosas e atraentes; trouxe idéias impossíveis e impraticáveis e arrebatou as atenções da província. Comprou ternos claros e coloridos. Vestiu porcos e canivetes com agulhas douradas e detalhes magníficos. Nomeou-se Alexandre, O Grande.
A idéia fracassou; virou emplasto. E descobriu-se, posteriormente, o verdadeiro motivo. Enterrado entre os míudos feixes de trigo restantes, o solidéu romano antigo, jurássico, contava a história.
O circo, desnecessário, jamais deveria suplantar a panificação. Maldita terra prometida.
As cimitarras dos rebeldes
Os rebeldes tomaram a prefeitura, o salão de festas, os moinhos e as plantações. Saquearam as senhoras, os vendedores e as crianças. Ao pôr-do-sol, partiram com as queimadas, o crepúsculo e o sorriso.
A conquista gerou soberba e inflamação moral. Eles beberam com desmesura e abandonaram os cuidados posteriores ao sucesso. Trocaram a carga necessária das cimitarras pelos desvarios da fortuna exagerada. E seguiram caminho desprotegidos.
Mas estamos no século XXI; e as espadas, enfim, enferrujadas e opacas. Ficaram estampadas, arenosas e visíveis, as impressões digitais dos guerrilheiros.
E a justiça chegou, posteriormente, anunciada por Borges. Sem cavalos, charretes e espingardas; montada em poderosos tanques e bólidos.
A crise da modernidade.
Os corredores
Centrium, a Biblioteca, é etérea, espacial e sufocante. Seus corredores infinitos formam figuras geométricas congruentes e angulares. E ninguém consegue completar o percurso cultural; todos, sem exceção, morrem ao atravessar a prateleira XLII - e a morte é instantânea e indolor.
Cientistas e bacharéis atravessam o universo e as constelações tentando solucionar o enigma visceral da Biblioteca. Viajam léguas e distâncias inomináveis, desperdiçam séculos e séculos, vidas inteiras. Alguns, conta-se, morrem e renascem diversas vezes e, infelizes, permanecem falhando.
E Borges pergunta: alguém oferece seus serviços à causa?
Sandice
Sandice imensa acreditar fielmente nas parábolas infinitas de Borges. Completa ausência de lucidez. Imaginar bibliotecas infinitas, estantes inumeráveis e objetivar, arrogante, conhecer todos os livros escritos, ousados e silenciosos da história universal. É impensável enveredar pelas plataformas hexagonais; tatear cego e obcecado pelos corredores infinitos e últimos, sempre procurando a outra versão do Quixote de Benjamin Havoc.
Não existem tantos exemplares, clássicos e versões. O mundo nunca seria condicionado a superfície igualmente hermética, sufocante e inatingível.
Não? Prove.
A menor probabilidade impossível
Você sempre tentará jogar os livros de Borges pela sala, pelo quarto, pela casa. Fará isso repetidas e infinitas vezes, alternando o método e sorteando o estilo. Eles baterão nos móveis e nos eletrodomésticos, nas lâmpadas e nos sofás; e sofrerão o mesmo até ricochetear em todas as lacunas indivisíveis da estrutura física universal.
Passado certo tempo, você desistirá, enfim; é inútil.
Os livros jamais cairão deitados.
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