quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O café (ou o absinto)


Paris sempre foi especialmente solitária. A única a abrigar, entre todas as muitas e disformes cidades do mundo, a simpatia e a severidade da solidão. A única igualmente fria, acolhedora, melancólica e aprazível, incomparável em todos os sentidos e em todos os paradoxos, mas especialmente convidativa aos solitários. Eles não escolhem lugar ou estilo; estão em todos os guetos e locais, em todos os variados rostos turísticos e resignados. Estão nas lojas requintadas e nos minúsculos restaurantes e espeluncas; estão servindo os cafés, recebendo as gorjetas e chorando a ilusão dos amores perdidos ou nunca conquistados. Estão sorrindo as últimas férias e a realização dos maiores sonhos.
Paris é, talvez, o principal entre todos os controversos, inimagináveis e realistas sonhos já sonhados, imaginados, sentidos ou solitariamente percebidos. A maior emoção dos desiludidos, a grande alternativa aos frustrados, a repetição histórica necessária aos saudosistas e o impressionante entusiasmo dos jovens. Ela é o recalque dos impossibilitados, o desejo dos infiéis e amantes, a apologia à liberdade e ao pensamento. A incrível exalação dos infinitos prazeres e torturas, o consolo dos desesperados. E todas as outras qualificações positivas e negativas concernentes ao impiedoso abandono efetuado pela solidão.
Ela é o começo de todas as potenciais tristezas e frustrações, a renovação de todas as expectativas e o destino inevitável de todos os afogamentos e imprevisões. A mulher solene, simpática e sintética, ansiosa e desgostosa, muito atônita e pouco esperançosa. A mulher ainda resistente e impassível, contudo; vestida, penteada e ornada com todos os caprichos merecidos e justificados. Ela, solitária, deseja uma pequena xícara de café, sem rodeios ou inflamações. Espera o tempo passar e espera o café acabar seguindo a proporção temporal. Ele estará terminado em alguns instantes e será absolutamente pontual, recebendo o convidado. Ou não.
O café em Paris é solitário. Ele nunca está acompanhado pelo requinte dos cardápios, está sempre lívido, escuro, achocolatado, pouco adoçado e extremamente quente. Ele precisa aquecer os sentimentos congelados e a temperatura sistemática e constante. Precisa estar sobre as minúsculas mesas das varandas; precisa pingar algumas gotas, surpreender o cliente e renovar a compaixão. O café é a única companhia de todos os homens e mulheres apenas acolhidos pela severa simpatia da cidade. O café, assim solitário, é também a principal manifestação da solidão. A infeliz manifestação da solidão da mulher, do homem e de todos os outros homens e mulheres de Paris.
O tempo passou, como sempre passará. O café acabou e esfriou, nessa ordem, e precisou retornar com alguns adicionais. O desgosto e a ansiedade aumentaram, os olhos também. As têmporas curvaram-se, mas o tempo passou. Todas as expectativas contraíram-se, esgotaram-se, e a realidade pareceu muito escura e agressiva, atirando o vento, o frio e a incontida solidão provocada pela ausência do café. Paris pareceu feia, fúnebre, e o universo florido, amarelo e vermelho, como mágica, converteu-se em cinza e preto. Começou a chover.
O tempo passou e a mulher percebeu a insuficiência do café. Ele não mantinha o pensamento, a esperança ou a devoção. Esfriava com muita rapidez, estava amargo e desqualificado. Ela chama o garçom e exige outra bebida, algo sufocante, acolhedor e forte. Recebe, recompensada, um estranho e incomum líquido transparente, entorpecente e confuso; o resultado é imediato, atordoante e pernicioso, servido em doses altíssimas, repetitivas, extremamente velozes. E o tempo acelera o compasso.
Paris está embriagada. Magistral, chuvosa, ainda mística, mas profundamente embriagada. Sem as abotoaduras e as pregas dos vestidos e calçados, sem as luzes dos teatros e os penteados elaborados. Louca, inerte e perdida, com o olhar dissipado, as expectativas desfiadas e o pensamento difuso. O copo repousa estático, vazio; a garrafa igualmente vazia, preenchida com todos os centímetros solitários permutados pela infelicidade da mulher. Ela está sozinha. Todos os homens e mulheres estão sozinhos. Todos os restaurantes e espeluncas estão sozinhos, alagados, escaldantes e chuvosos.
Paris não percebe a indiferente companhia lateral, à mesa, escura e solene como o cachimbo, o chapéu e a amargura. Ela não desvia o olhar, não balbucia reação, não acompanha os passos, não segue os movimentos. A mulher é a enorme cidade e a íntima solidão de todos os cidadãos solitários e acompanhados. A manifestação da solidão de todos os homens e mulheres. Não é possível distinguir, enfim, absolutamente nada. Ela está, enfim, louca e corrompida, finalmente entregue.
Mas, afinal, estamos todos loucos ou apenas solitários?

 Nova Friburgo, 31/08/2009

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