sábado, 12 de dezembro de 2009

A fantasia

O morto
Ele andava pela contramão na avenida lotada de carros, e chovia bastante. Mas ele não sabia exatamente aonde estava indo, sequer a razão pela qual estava dirigindo, visto que não tinha compromissos marcados, família ou amigos restantes.
A tormenta não cessava, e começou a ventar. Um vento cortante, penetrante, e as janelas do veículo estavam abertas. Era impossível fechá-las naquelas circunstâncias. A água entrava e voava pelo automóvel, e voavam também os papéis no banco de trás, a pesada maleta de trabalho e a Bíblia Sagrada.
Quando o carro se chocou com um dos postes tombados pela erosão momentânea. Apagaram-se as luzes internas, e tudo parecia imóvel, estático, morto. Mesmo o vento parou de soprar, mas todos os pertences que a natureza queria levar já haviam sido sugados. E ali repousou o esqueleto mecânico, apodrecendo, por décadas e décadas, até o fim dos tempos. E não se enganem: o tempo não durará mais que algumas décadas.
Mas é melhor considerar esta história uma grande e incômoda metáfora.

O apostador
Angel era exímio jogador de dados, roleta e 21. Conseguia calcular probabilidades em frações mínimas de segundo. Tinha raciocínio metódico e instantâneo, e aos 24 anos obteve consagração e celebração em Atlantic City.

Borges enviou-lhe, então, a Las Vegas. Ele conquistou U$$ 233.127 em prêmios, limpou máquinas e controladores, devorou residências e abandonou prostitutas. Experimentou bebidas desconhecidas e adormeceu, pouco cauteloso, dentro do famoso Shelby GT500 de Randall Raines.

Acordou, horas depois, confortavelmente instalado na residência familiar de Guadalajara, e tomou café. Releu os jornais e chegou, pontual, à escola.
 

America's playground was just a dream.

Judite e Holofernes
O homem entrou na residência apagada e lamentável. Sentou-se à mesa e comeu as bisnagas e as carnes preparadas pela mulher. Ela olhava com assombro para os canários do quintal.

"Quero outra caneca, Judite." O homem levantou os braços e pegou a caneca.

Ela entrou na cozinha. Pegou o machado e ergueu a imagem, exigindo proteção. Chamou a velha dos sortilégios, a bruxa, e voltou à sala. Cortou a cabeça de Holofernes, sentou-se à mesa e também comeu.

Caravaggio, imaginando semelhante teatro, sentou-se, comeu e pintou o quadro. E todos imaginaram, então, situação exatamente idêntica. 

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