quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Os 63 minúsculos livros da Biblioteca




As margaridas

Uma sinfonia italiana tocava no salão, e o sujeito estava sentado e sozinho, tomando cerveja. A música não era exatamente italiana, mas cinematográfica. Uma gaita estridente, repetitiva, intermitente. Ela se misturava ao silêncio, embora tocasse com alternância; mas o som ecoava, valente, e completava o ciclo.
E o sujeito certamente conhecia aquela música, sabia tê-la ouvido em alguma ocasião indistinta. Ele cheirava a composição e se lembrava das margaridas do cerrado, das caminhadas eventuais, do amor reciclado que nunca voltou e nunca chegou a reclamar seus direitos.
E ele saiu do salão como se nunca tivesse sentado naquela cadeira escura e manca, como se aquele inesquecível momento fosse uma catarse, e o seu dever moral estivesse definitivamente cumprido.
Isso, talvez, em algum lugar inóspito do Oeste, aonde as ferrovias ainda não ousavam chegar.


O capote

E ele, como fazia todos os dias, no mesmo ritmo, tornou a vestir o surrado capote que lhe servia de abrigo desde os 18 anos. O manto esverdeado ficava sobre o chapéu, protegendo a bengala da chuva. O livro de Bioy Casares, novo e platinado, adormecia embaixo do casaco e da blusa fatiada, e com ele adormeciam as histórias, os contos, os rochedos e os minotauros. Mesmo os assassinos, os sedentos por vingança, que forçavam a retenção do capote e queriam sentir a chuva, a neve, o vento e as névoas inconstantes.

Mas não havia espaço para a literatura de Bioy Casares naquele planeta, e o homem do conhecido capote não queria aquela libertinagem entre os seus prazeres: Deus, o relógio e a apaixonada contemplação do nada.

Pobre romance de colinas turvas e elefantes brancos.


Judite e Holofernes

O homem entrou na residência apagada e lamentável. Sentou-se à mesa e comeu as bisnagas e as carnes preparadas pela mulher. Ela olhava com assombro para os canários do quintal.

- Dê-me outra caneca, Judite. O homem levantou-se e pegou a caneca.

Ela entrou na cozinha. Pegou o machado e levantou a imagem, exigindo proteção. Chamou a velha dos sortilégios, a bruxa, e voltou à sala. Cortou a cabeça de Holofernes, sentou-se à mesa e comeu também.

Caravaggio, imaginando semelhante teatro, sentou-se, comeu e pintou o quadro. E todos imaginaram, então, situação exatamente idêntica.

As plantações de trigo

Juan caminhava todas as manhãs, religiosamente, pelas 89 plantações de trigo fundadas em 1453 nas planícies de Valdemossa. Vizinho de Chopin, nômade e beberrão, o agricultor tornara-se mestre nas artes de fabricação da cerveja especializada. E quis construir Constantinopla.

O investimento ganhou subsídios e investimentos e amealhou a confiança de Borges, homens e mulheres poderosos. Solícito, Juan respondeu com promessas vultuosas e atraentes; trouxe idéias impossíveis e impraticáveis e arrebatou as atenções da província. Comprou ternos claros e coloridos. Vestiu porcos e canivetes com agulhas douradas e detalhes magníficos. Nomeou-se Alexandre, O Grande.

A idéia fracassou; virou emplasto. E descobriu-se, posteriormente, o verdadeiro motivo. Enterrado entre os míudos feixes de trigo restantes, o solidéu romano antigo, jurássico, contava a história.

O circo, desnecessário, jamais deveria suplantar a panificação. Maldita terra prometida.


As cimitarras dos rebeldes

Os rebeldes tomaram a prefeitura, o salão de festas, os moinhos e as plantações. Saquearam as senhoras, os vendedores e as crianças. Ao pôr-do-sol, partiram com as queimadas, o crepúsculo e o sorriso.

A conquista gerou soberba e inflamação moral. Eles beberam com desmesura e abandonaram os cuidados posteriores ao sucesso. Trocaram a carga necessária das cimitarras pelos desvarios da fortuna exagerada. E seguiram caminho desprotegidos.

Mas estamos no século XXI; e as espadas, enfim, enferrujadas e opacas. Ficaram estampadas, arenosas e visíveis, as impressões digitais dos guerrilheiros.

E a justiça chegou, posteriormente, anunciada por Borges. Sem cavalos, charretes e espingardas; montada em poderosos tanques e bólidos.

A crise da modernidade.



Os corredores

Centrium, a Biblioteca, é etérea, espacial e sufocante. Seus corredores infinitos formam figuras geométricas congruentes e angulares. E ninguém consegue completar o percurso cultural; todos, sem exceção, morrem ao atravessar a prateleira XLII - e a morte é instantânea e indolor.

Cientistas e bacharéis atravessam o universo e as constelações tentando solucionar o enigma visceral da Biblioteca. Viajam léguas e distâncias inomináveis, desperdiçam séculos e séculos, vidas inteiras. Alguns, conta-se, morrem e renascem diversas vezes e, infelizes, permanecem falhando.

E Borges pergunta: alguém oferece seus serviços à causa?


Sandice

Sandice imensa acreditar fielmente nas parábolas infinitas de Borges. Completa ausência de lucidez. Imaginar bibliotecas infinitas, estantes inumeráveis e objetivar, arrogante, conhecer todos os livros escritos, ousados e silenciosos da história universal. É impensável enveredar pelas plataformas hexagonais; tatear cego e obcecado pelos corredores infinitos e últimos, sempre procurando a outra versão do Quixote de Benjamin Havoc.

Não existem tantos exemplares, clássicos e versões. O mundo nunca seria condicionado a superfície igualmente hermética, sufocante e inatingível.

Não? Prove.


A menor probabilidade impossível

Você sempre tentará jogar os livros de Borges pela sala, pelo quarto, pela casa. Fará isso repetidas e infinitas vezes, alternando o método e sorteando o estilo. Eles baterão nos móveis e nos eletrodomésticos, nas lâmpadas e nos sofás; e sofrerão o mesmo até ricochetear em todas as lacunas indivisíveis da estrutura física universal.

Passado certo tempo, você desistirá, enfim; é inútil.

Os livros jamais cairão deitados.

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